top of page

Desobediência Civil: a Igreja em meio à pandemia

  • Foto do escritor: Prosélita | Vida Cristã
    Prosélita | Vida Cristã
  • 23 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

ree

A crise criada pelo novo coronavírus tem trazido reações diversas em todos os meios sociais e na Igreja Cristã Evangélica não foi diferente. Por um lado a arrogância precipitada de igrejas contemporâneas com líderes como Silas Malafaia, por outro a prudência equilibrada de igrejas históricas com líderes como Augustus Nicodemus. Diante disso, é provocado questionamentos quanto aos comportamentos que devem ser adotados durante esse período pelas Igrejas, principalmente em meio a grande quantidade de informações cotidianamente transmitidas nas redes sociais e em toda a mídia.


Os advogados Afonso Rangel e Pedro Henrique (2020) explicitam perfeitamente a guerra de narrativas surgidas nesse período pandêmico, em meio às Igreja Evangélicas


“Em tempos de guerras de narrativas, a verdade tem se tornado cada vez mais líquida, isto é, aquilo que é massivamente compartilhado, ainda que falso, se torna uma verdade. Por isso, no meio de tantas informações, corremos o risco de ser intoxicados por notícias falsas. Nesse passo, em um país religioso como o Brasil, se faz necessário levantar um debate sobre a responsabilidade que as denominações religiosas e suas lideranças desempenham em uma sociedade que passa por uma crise sanitária e econômica sem precedentes na história” (RANGEL, HENRIQUE, 2020).

É necessária uma reflexão pontual sobre o papel que os cristãos estão desempenhando nesta crise. Isso porque, o último censo realizado em 2010, demonstrou que o Brasil continua sendo um país majoritariamente cristão, sendo que 86,8% da população se declara cristã (64,2% se declara católica e 22,6% evangélicos). Em números, mais de cento e oitenta milhões de brasileiros se declaram cristãos. Sendo assim, há que se indagar em como as lideranças religiosas estão orientando seus fiéis e como suas posturas perante essa crise os influenciam.

Nos últimos anos temos acompanhado um aumento do ultra tradicionalismo no meio cristão e o surgimento de um pensamento fundamentalista que, infelizmente, tem provocado um movimento de cisma entre a razão e o pensamento religioso. Líderes de igrejas neopentecostais como Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, tem postado vídeo apresentando ofertas de sementes de feijões pelo valor de R$ 1.000,00 (mil reais), alegando que as “sementes abençoadas” seriam uma forma de cura para a COVID-19. E ainda, o pastor Silas Malafaia, em vídeo publicado em seu canal do YouTube, no dia 23.03.2020, publicou um vídeo intitulado “Coronavírus! Querem fechar as igrejas que sou pastor? Recorram à justiça!”. Nesse vídeo, o pastor afirma que não fecharia suas igrejas e que “a igreja nessa hora é uma agência de saúde emocional tão importante quanto os hospitais”. O que foi mal visto e gerou muitas críticas por parte do meio cristão em geral.

ree

O Ministério Público Federal apresentou uma notícia crime contra o pastor Valdemiro perante ao Ministério Público do Estado de São Paulo, requerendo que o órgão investigasse o religioso por suposta prática do crime de estelionato. Sendo assim, qualquer análise teológica rasa pode apontar que situações como essas são frutos de uma leitura distorcida da Bíblia e, infelizmente, representam indícios de mercantilização da fé.

Vivendo em um cenário pandêmico, onde uma doença nova, ou seja, que a medicina ainda não descobriu um tratamento eficaz e tampouco possui uma vacina completamente desenvolvida, todas as autoridades de saúde indicam que a melhor maneira de combater a doença é diminuir o contágio. Por essa razão, as igrejas foram totalmente afetadas com as determinações a respeito de isolamento social pelos estados e municípios, tendo em vista que a necessidade de evitar aglomerações tornou impossível a reunião dos fiéis em suas igrejas para realização de cultos e demais atividades.

Ainda que exista esse avanço do fundamentalismo religioso que, sem dúvida, prejudica o combate ao novo coronavírus ao disseminar informações falsas ou distorcidas, bem como ao satanizar a ciência, é preciso destacar a postura íntegra e responsável de outros tantos líderes religiosos que compreenderam que suas falas são ouvidas pelos seus fiéis e suas orientações servem como norte neste tempo de crise.

Nessa esteira, é possível destacar o pastor e escritor Yago Martins (2020), responsável por um dos maiores canais de teologia do YouTube, o “Dois dedos de Teologia”, e pastor de uma igreja batista. Diferente da arrogância precipitada de Silas Malafaia em seus vídeos, Yago Martins diz o contrário, traçando uma crítica em suas redes sociais pela fala equivocada de Silas Malafaia e ainda do presidente Bolsonaro, o qual disse ser um absurdo fechar as igrejas por decreto na pandemia. Ele alega que

ree

"Em parte sim, os pastores que devem gerar suas igrejas e tem liberdade garantida pela constituição para isso, mas não é hora para isso. Igrejas são ambientes de contaminação decorrente aglomeração. Sim, vejo a necessidade de fechá-las para conter tantas mortes, mas não somente as igrejas, é necessário fechar tudo! Quando Malafaia e outros pastores neopentecostais fazem parecer um ato de fé manter os cultos, o que eles estão fazendo é tentar o Senhor Deus, como Satanás tentou Jesus no deserto (Lucas 4:1-13). Quando Satanás diz para Jesus “pula aí que Deus vai te pegar”, é o Malafaia dizendo “vem para o culto que Deus vai te proteger”. Ele está tentando a Deus. É uma questão de saúde pública, uma decisão para o bem da sociedade em geral, em amor ao próximo"(MARTINS, YAGO, 2020).


Além de Yago, o argumento mais sensato e satisfatório ficou por conta do escritor e pastor reformado Augustus Nicodemus (2020), o qual explicitou de forma equilibrada entre o antagonismo generalizado, em uma live no seu canal do YouTube


“Aqui no Brasil, por enquanto, a suspensão das atividades religiosas tem uma boa razão. São medidas sanitárias com o objetivo de impedir a disseminação do coronavírus. O quanto puder colaborar com as autoridades, faremos isso, entretanto, as autoridades precisam ter cautela para não implementar leis restritivas e absurdas sem base alguma. O crente precisa entender que é um momento difícil, mas a desobediência civil só deve ser aderida em última instância, em Estado Democrático de Direito e por boas razões” (NICODEMUS, 2020).
ree

Sim, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso VI, dispõe que a liberdade de crença e de pensamento são invioláveis e que é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Entretanto, essa mesma Constituição prevê no caput do artigo 5º que é garantido a todos os brasileiros a inviolabilidade do direito à vida e, por sua vez, o artigo 6º prevê, que a saúde é um direito social. Sendo assim, se no cenário de uma crise de saúde pública, a reunião de pessoas em igrejas se torna nociva à saúde da coletividade, é notório que a suspensão das atividades nos templos religiosos sejam suspensas enquanto as autoridades sanitárias não indicarem que o retorno das atividades não oferecerá risco à vida das pessoas. Isso em si não configura-se como perseguição religiosa, como Malafaia explicitou em seus vídeos. Portanto, a desobediência civil seria desnecessária e até prejudicial para a sociedade e os fiéis.

Fica claro quando, nesta situação pandêmica, não se torna possível realizar alguns cultos, que isso não é uma perseguição religiosa necessariamente. Em alguns casos pode até ser, mas não necessariamente, pois continua os cultos mesmo que online. O ato voluntário das lideranças das Igrejas Cristãs Evangélicas em fechamento das atividades presenciais dos cultos é, na verdade, um grande ato de serviço da igreja para a sociedade. Entende-se que é um momento importante e as reuniões podem, de alguma forma, ser um meio de transmissão, portanto, como um ato de serviço à sociedade e manifestação de apreço pela vida humana é mais adequado, nesse momento, promover outras formas de reuniões.

O ato das autoridades de promover decretos, de certa forma, incentivam os líderes a fazerem isso. Se fazem uso também, dos protocolos de reabertura para reabrir as igrejas e retomar as atividades de forma presencial. Em suma, é um ato de serviço e de sujeição voluntária por parte da Igreja às autoridades governamentais. Isso também é uma atitude de amor ao próximo e aos seus membros, porém, na medida que o índice de pessoas contaminadas e de mortalidade diminuíssem e as autoridades não se disporem em realizar reabertura, ainda que gradual dos serviços religiosos, aí sim podemos considerar perseguição religiosa. Abrir shoppings, mercados púbicos e não liberar abertura de Igrejas, sem dúvida, pode-se considerar perseguição religiosa e sendo assim, é o momento para a desobediência civil.

Como a Igreja vai responder à sociedade, aos seus membros e às outras igrejas se os líderes não forem responsáveis e pacientes o suficiente para esperar o momento oportuno, com as medidas adequadas para reabrir os cultos? A Igreja deve agir dentro do Estado Democrático de Direito. Ainda existem razões sanitárias e de saúde extremamente fortes para que o retorno seja feito de maneira limitada e com eficiência, respeitando as recomendações que as autoridades sanitárias estipularam.

É extremamente necessário e notório que as lideranças religiosas reconhecem sua responsabilidade nessa crise ao direcionarem seus fiéis para caminhos de segurança e de respeito à ciência, demonstrando que a fé e a ciência não são antagônicas. Promover a desinformação, o fundamentalismo e o desprezo à ciência são uma atitude, no mínimo, irresponsável, à medida que neste cenário de pandemia, ações como estas colocam em risco toda a coletividade.

As leituras maldosas e deturpadas da Sagrada Escritura são preocupantes. Buscando seus próprios interesses e utilizando a Bíblia para lucrar, as promessas de curas por meio de sementes mágicas, toalhas abençoadas, entre outros, são uma ameaça à toda sociedade no cenário em que vivemos. O fundamentalismo cristão é anticientífico e vive em paradoxo, pois negam a ciência mesmo sendo ela, na teologia cristã, um dos dons do Espírito Santo e, principalmente, violam o bem mais precioso para um cristão: a vida.


Por essa razão, é possível concluir que cooperação entre a fé e a ciência é essencial no combate à propagação do novo coronavírus em um país como o Brasil, isto é, em um país em que a religião é tão presente e, principalmente, influente na vida dos cidadãos.


Criado por: Ranyella Cássia.

23/11/2020, 09h.



REFERÊNCIAS

Arcebispo de Manaus reafirma que as igrejas continuarão fechadas. Disponível em: https://www.todahora.com/articulos/arcebispo-de-manaus-dom-leonardo-steiner-reafirma-que-as-igrejas-continuar%C3%A3o-fechadas Acesso em 13.05.2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. – Brasília : Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2018. p. 5.

CNBB reforça recomendação ao episcopado brasileiro de manter o distanciamento social. Disponível em:https://www.cnbb.org.br/cnbb-reforca-recomendacao-ao-episcopado-brasileiro-de-manter-o-distanciamento-social/ Acesso em 12/05/2020.

Como a crise do coronavírus expõe racha entre evangélicos no Brasil. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52313890 Acesso em 12/05/2020.


“Coronavírus! Querem fechar as igrejas que sou pastor? Recorram à justiça!”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c78SAqUgDTI&list=PL7BSOIjlQ7SrdgCMsVCQ_8D1isSaGDztk&index=63 Acesso em 13.05.2020.

Estudo demonstra que a suspensão das atividades religiosas reduzirão em 9,7% as hospitalizações e 2,6 % as mortes no país, por COVID-19. Disponível em: https://culturaeducacaocnbb.com/estudo-demonstra-que-a-suspensao-das-atividades-religiosas-reduzirao-em-97-os-infectados-e-26-as-mortes-no-pais-por-covid-19/?fbclid=IwAR2cYYoSOx3ABpvMG5Rg2AYN1phQ5lxVaP5eL-ijTI8uLZOT_28YG4OSjQM . Acesso em: 13.05.2020.


MPF pede retirada do ar de vídeos de pastor prometendo cura falsa da covid – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/11/mpf-pede-retirada-do-ar-de-videos-de-pastor-prometendo-cura-falsa-da-covid.htm?cmpid=copiaecola Acesso em 12/05/2020.


コメント


bottom of page